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As pessoas aglomeram-se na praça baça. Os meus olhos envidraçados pelas lentes dos óculos, tiram-me a perceção, não me transportam para a escuridão do dia, mas quase.

Deixam-me à espreita, com a manha refeita, matreirice de como quem:
Se não viste, visses.
Sobre a espreita do navegante Ulisses. A única diferença é que, em vez de navegar no mar, navegava em terra.

Estava numa curiosidade mórbida, espreita feita, ouvido à espreita e olho de rufia que não se conforma, não aceita.

Eu até posso descrever-vos a praça em massa. Estava a fonte a monte, transbordava como uma cabeça cheia, a vida alheia nas bocas loucas, compras sobre as carteiras viam-se poucas. Afff!!! Pensei eu, numa tarde de sábado que o número importava. Estavam cem gatos-pingados e um ou dois, tinham um saco, nenhum com laço. Não era presente. Seria fruta? Legumes? Carne ou peixe?

Não se sabe! A incógnita é boa! E a curiosidade fica nem que a alma doa. É meninos, é!
O ser humano é curioso. Eu sou, admito!
O saco chamou-me atenção. Era verde. Eu decorei esse. Os outros dois, não sei.

Aquele, chamou-me atenção. Tinha formas redondas, pareciam laranjas, bananas, maçãs e pêras e limões. Aiii, mas não tenho certeza. Os óculos estavam sujicos.

Mas eu lá vi as cores, após muito me arregalar. Laranja, amarelo, verde, vermelho, o ramo e folha da apanha do limoeiro.

Oh! Tentava ler os lábios. Tentava decifrar o que falavam. Imaginem. Se não consigo ver um simples saco bem, imaginem ler lábios.

Aos poucos, fui percebendo que tinha um olho horrendo. Via mal ao longe, Deus me livre.
Nem os óculos me safavam da podridão da minha vista.
Uma coisa é certa. Vi que era fruta, e era.
Não vi tudo, infelizmente. Mas vi alguma coisita, menos a marmita.

Era o senhor Zeferino que estava no banquinho do costume. Era o dia de ir ás compras. Tinha o saquinho em cima do banco enquanto falava com outro senhor. Riam-se muito. via isso. Mas até que ponto era um riso feliz?

Soube que o sr. Zeferino vivia sozinho com 300 euros de reforma. A mulher dele, morreu há 5 anos. Nunca mais foi o mesmo.

Passa mais tempo sozinho. Quantas vezes vi aquele homem sozinho noutras andanças?
Perdi a conta!
A mulher acompanhava-o para todo o lado! Tem dois filhos, um na Suíça e outro na Bélgica.
Estão muito longe para o acudir.
É triste!

Já não o via a falar com vizinhos desde mil novecentos e troca o passo. Parecia que isso estava a mudar. Vi-o a falar com o nosso vizinho do 5• Esquerdo, o Sr. Laurentino. Reformado e viúvo. A mulher morreu-lhe há 1 ano. Será o destino?

Destino ou não, eles falavam. Relembravam os velhos tempos, desde mil e novecentos.

Depois do senhor que conversava com ele, mais nada, nem ninguém o acompanhava. Estava só, a solidão era profunda e delicada, a mente desvairada.

O senhor Zeferino era feliz. Depois da mulher morrer, ele também morreu por dentro. Nunca vi aquele homem tão desleixado e sem rumo. Ele precisava de ajuda. Tinha a boca e a feição muda. Não ria, não erguia, nem o semblante se via.

Bom! O que podia fazer eu?
Depois de uns dias a conversar com os meus botões, decidi:

Reunir a minha roupa e oferecer-lhe alguma. O mais quente. O mais decente. Ele precisa mais que eu. Oferecer-lhe uma ou duas horas do meu tempo, um sábado ou domingo. Acompanha-lo.

Assim fiz. Aproxime-me e dei-me. Salvo seja!
Dei a minha maior feição e amor no coração.

Sentei-me ao lado dele, já estava ele sozinho. Ele conheceu-me logo, apesar dos seus setenta e cinco anos.

Espreitei no canto do olho para dentro do saco. Vi as tais frutinhas.
A comer ele estava.
Senti-me mais aliviado. Palavra de honra!

Começamos a falar sobre a vida. Ele contou-me coisas antigas, memórias e histórias…

Continua…

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